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“Ter consciência dos micropoderes que a gente tem, da importância que eles têm, eles são tão importantes quanto qualquer outro tipo de poder digamos. Então eu acredito muito nisso, na união dos saberes, na união dos micropoderes e da gente ter consciência de tudo isto”

- Carol Ananindeusa

Carol Ananindeusa é professora do ensino público no Pará, na Região Norte. Além de professora de linguagens e suas tecnologias, Carol também é artista, Dj, atriz e carrega no seu trabalho a sua história, como o fato de ser filha adotiva, e a sua formação como mulher negra afro-ameríndia da Amazônia. Nessa conversa Carol fala um pouco da sua trajetória e reflete sobre a importância dos processos educativos na construção da equidade.

CEAF: Você poderia nos contar um pouco da sua trajetória, sobre como você chegou até onde você tá agora.

Carol Ananindeusa: Eu tenho apenas 35, mas acho que eu já percorri um bocado de chão. Eu sou do interior da Amazônia, do interior do Estado do Pará, cidade de Abaetetuba, que significa a terra de mulher forte, e de homens fortes, na região das ilhas, então eu sou ribeirinha mesmo e eu moro na cidade, na Amazônia urbana, na cidade de Belém desde criança. Eu Sou filha adotiva, eu não conheço meus pais biológicos. Eu fiz graduação em letras, habilitação em língua inglesa na Universidade Federal do Estado do Pará, me graduei em 2009 e depois eu fiz uma pós-graduação em tradução e interpretação português- inglês- português e hoje eu sou professora na rede pública de ensino, sou professora de língua inglesa do Estado do Pará desde 2009. Eu acho isso muito simbólico, muito rico e muito importante, para mim faz muito sentido ser uma pessoa que teve a maior parte da sua formação do ensino superior em instituições pública, só uma especialização que fiz fora. É meio que confirmar coisas que eu penso, pois eu acredito muito na educação, eu acredito muito na arte, acredito muito nesse poder que essas duas ferramentas têm de conhecimento, de intelectualidade, de magia mesmo, da vida, de mobilidade social, de consciência política, de entender como o mundo funciona, as estruturas e as relações de poder. 

Eu sou professora do ensino fundamental maior, do ensino médio, da educação de jovens e adultos e também do ensino profissionalizante. Essa é parte assim mais burocratizona da minha vida, digamos assim, mas eu também estou DJ desde 2015 e foi engraçado essa história de ser DJ.  Porque foi um momento meu de crise, de uma doença psicossomática, de uma depressão. E foi aí que nasce ananindeusa, isso de recultivar essa deusa que existe dentro de mim. Então já morando em Ananindeua, me identificar com essa terra, com esse ar, com todo esse movimento, sabe, com ataques políticos profissionais, enfim, me reconectar no meio disso tudo, no meio das artes e que eu tava parada, né? Eu também tinha uma carreira de atriz, ainda quando eu tava na graduação rompi com isso e voltei agora recentemente, inclusive, na pandemia acabei de gravar um filme, que vai ser muito bacana quando estrear. Então, para a gente ver como é importante, como realmente não existe separação da arte com a vida. A arte imita a vida, a vida imita a arte. 

CEAF: E o que significa ser professora?

Carol Ananindeusa: As pessoas me perguntam se eu em algum momento vou deixar de ser professora.  Eu acredito que não.  Até mesmo porque ser professora não e só está dentro de sala de aula, porém eu acredito muito nesse micropoder da gente está dentro da sala de aula, do contato direto com outras pessoas, ajudando na formação das pessoas.  O profissional de educação é o profissional que mais tem contato com qualquer pessoa, porque todo mundo passa para escola. Então é meio que eu aprendi a ser professora vendo meus professores e tem professores meus e professoras que até hoje são referência para mim, porque eu lembro muito bem deles e delas. Eu sei muito bem o que eu quero repetir, o que eles fizeram comigo e eu sei o que eu nunca quero repetir, o que fizeram comigo. Eu quero ser a pessoa, eu sou a pessoa que fortalece uma ideia, que fortalece uma outra pessoa, que faz a pessoa acreditar que existe brilho na vida, principalmente porque as pessoas com quem trabalho, que geralmente são crianças e adolescente, em sua maioria, são pessoas que inclusive já perderam esse brilho, que não têm esse brilho ou que dentro de casa não têm a referência. Eu percebo que para muitas delas eu sou referência, sabe,  olha  como a professora é bonita, olha como a professora é legal,  olho como a professora... aí eu conto a minha história porque às vezes para eles e para elas, para aquelas  crianças, parece que sou eu quase um et, mas gente sabe,  todo mundo pode estudar construir sua história, ser protagonista da sua própria história, ter a sua vida e  isso inclusive a gente falando, eu me lembro de professores falarem isso na sala de aula e isso ter me tocado profundamente, tanto que eu lembro até hoje. Ter consciência dos micropoderes que a gente tem, da importância que eles têm, eles são tão importantes quanto qualquer outro tipo de poder digamos. Então eu acredito muito nisso, na união dos saberes, na união dos micropoderes e da gente ter consciência de tudo isto. Eu acho que a arte, a educação e a cultura, a gente têm muito mais consciência sobre esses importantes, principalmente nós que somos pessoas que escolhemos isso para a vida.

CEAF: E atualmente quais são os processos que você está liderando?

Carol Ananindeusa: Formalmente não assumo nada, nenhum grupo. É uma consciência mesmo, pessoal, de autonomia e Independência de me firmar.  É muito bacana, porque esse processo do firmamento, eu percebo que essa raizinha começou faz muito tempo, mas que ela foi amadurecendo com o tempo, quando eu me entendi como ananindeusa, que todo o mundo tem uma divindade, um sagrado e você tem que cultivar isso, porque se nós somos filha da natureza, se nós somos filhos do universo, é obvio que eu tenho isso dentro de mim.  Não interessa a religião que você acredita ou se você não acredita. Eu também me considerava agnóstica, mas é engraçado como eu sempre acreditei que tinha alguma força no universo da natureza e principalmente depois que eu comecei a tomar a ayahuasca. Do quanto que é fortalecedor você tá nessa conexão, sabe, então esse do se firmar, de firmar minha consciência, de me firmar enquanto pessoa, de me deixar nítida, de me deixar clarividente, das possibilidades de tudo. Eu tô indo muito mais nesse caminho, me construindo muito nesse caminho e estou acreditando que eu tenho muito mais resultado e sem medo, que é o que mais importa.

CEAF: Eu queria que você falasse um pouco sobre o seu contexto, principalmente porque há imagem de que não há pessoas negras na Amazônia?

Carol Ananindeusa: Amigo, olha só, eu fiz um teste de DNA recentemente agora em janeiro, por curiosidade também, mas muito porque eu queria saber mesmo, já que eu sou filha adotiva e não sei de nenhum rastro. Aí deu no meu teste que 37% do meu DNA é de origem africana, nas várias partes da África, 34% é das Américas, de norte a sul da América todinha, deu muito Brasil, óbvio, na Amazônia e no litoral brasileiro, deu uns 24% de Europa, principalmente a parte ibérica, a Espanha, Portugal, por ali e deu a parte que achei mais incrível, 6% árabe. E aí, eu acredito muito que isso existe na gente, na nossa memória do DNA, não fica não fica tão apagada assim, né? Porque faz muita conexão das coisas que eu gosto, que eu cultuo, que eu considero importante, sabe, desde a culinária até a intelectualidade, junto, por que eu tô falando disso.  Porque às vezes a gente esquece que o Brasil foi invadido e foi muito bem invadido, os portugueses fizeram muito bem o trabalho deles. O apagamento indígena é muito nítido, e mesmo na Amazônia existe também essa violência genocida, etnocida, vários cidas, de intelectualidade então nem se fala.

O apagamento negro é pior, porque foi todo um tráfico de pessoas, foi a parte mais violenta da história do mundo, essa época dos navios, em que socavam mesmo, colocava um monte de gente igual lata de sardinha em navios. Quem chegar chegou, quem não chegou se joga no mar, jogava-se no mar, quer dizer, ou se chegasse terminava de se matar, ou seja, é óbvio que a gente já tem o DNA dessas pessoas que chegaram vivas e que tem o potencial genético. Porém, outro apagamento, também os portugueses não são otários, mesmo tendo feito todo esse tráfico, todo esse crime, muito se apagou da quantidade de pessoas que entrou aqui. Então, não tem o número preciso de pessoas, mas estima-se que mais de 50 milhões de corpos que chegaram aqui, de pessoas, para esse trabalho forçado. E isso chegou através da Bahia, chegou através do Rio de Janeiro, chegou através do Maranhão, do Estado do Pará e diz-se inclusive que os que chegavam pelo Estado do Pará eram os que ficavam pela Amazônia. Tem uma parte do Pará também que foi onde ouve mais resistência quilombola, no oeste do Pará,  no Marajó, tanto que até hoje é onde mais tem reminiscências de quilombos, no Marajó, Salvaterra Soure e no Oeste do Pará, Trombetas, essa região,  e existe,  tu vai ver nitidamente Macapá, vai perceber,  percebe-se que existe essa população ou mais ainda mais atreladas  a essa filosofia  quilombola, de estar  junto com a terra,  família e outros já nem tanto,  mas isso é óbvio, é notório, quase 75% da população paraense é negra, como que tu vai dizer que não tem negro  na Amazônia?

CEAF: E por que será que existe essa negação? Por que as pessoas insistem em afirmar que não há população negra na região amazônica?

Carol Ananindeusa: É nítido, quando se diz que não tem, obviamente se quer negar isso e isso tem a ver com política pública e o estado sabe muito bem desses números. No Brasil, segundo o IBGE, quem se auto declara pardo e negro, parda e preta, é negro, uma pessoa negra pele negra, porque ainda tem que trabalhar tudo isso.  Porque existe todo esse trabalho, ainda do Movimento negro Unificado dos anos 90 para cá, principalmente, das pessoas se auto declararem negra, das pessoas terem orgulho disso de cultivarem a sua ancestralidade, a sua história, e entender o que foi que aconteceu? Porque até então, eu que sou de 86, e nasci depois da ditadura militar, eu tive ainda na escola a referência de que pessoas negras eram descendentes de escravos. Escravo, descendentes de escravos, como se a nossa história começasse aí, muito pelo contrário, nós somos filhas de reis e rainhas, de pessoas guerreiras que vieram para cá sem um centavo no bolso e que mesmo assim conseguiram viver relativamente bem no meio da bagunça. Olha só o quanto que a gente tem ainda de tecnologia de intelectualidade, que a gente conseguiu sobreviver perante toda essa história violenta. Muitos de  nós tem terra, sem o direito à propriedade, sem ter o que cultivar, sem ter direito a fazer um empreendimento, que a gente sabe muito bem como foi a história desse país, que houve um momento em que o estado deu terras e incentivou ocupação para produção agrícola,  óbvio que só tinha esse meio produção, mas quem  era que tinha direito? Pois quem tinha também alguns centavos no bolso, os europeus e os descendentes dos europeus e não a gente, nem indígena e nem população negra, pois a população indígena foi praticamente exterminada, foi expulsa de sua terra, e a gente que veio traficada.

Então quando a gente tem consciência dessa história, é muito mais importante. Na Amazônia tem população negra sim, em toda Amazônia e no Nordeste tem indígena também, porque tenta se colocar aqui no Nordeste só tem negro praticamente, a começar pela Bahia, como se a população negra só tivesse na Bahia e que no Norte, na Amazônia só tivesse floresta e indígena.  Isso também ainda é um pensamento colonial e racista?  Então, o estado, as pessoas que ocupam espaços de poder, da caneta, o espaço de pensamento, de raciocínio, de como fazer uma gestão pública, de pessoas, com densidade demográfica, com conhecimento de urbanização e desenvolvimento pessoal, tem muita consciência de tudo isso,  para entender porque essa cidade está desse jeito, porque que no Estado do Pará, por exemplo, agora puxando um exemplo bem nítido, bem óbvio, bem atual, tem apenas 60% da população que tem acesso à internet, mas não exatamente esse 60% é uma internet de qualidade e obviamente, quem é maior parte que tá nesses 40%? São as pessoas de baixa renda, que são as pessoas muito provavelmente nitidamente de que origem étnico-racial?  Negra e indígena. Ou seja, quem é que tá por fora, quem é tá mais sofrendo no meio dessa pandemia toda.  Os meus alunos obviamente. Isso é muito complicado. Quem é que tem direito à educação? Um dia desse passou-se no jornal gente batendo palmas porque o menino subia numa árvore para assistir a aula. Gente, isso é desumano. Isso é um pensamento colonial, dizer, olha como ele se esforça. Gente parem com isso, pelo amor das deusas e esse reforço, de que tu tens que sofrer para ter sucesso na vida, da meritocracia, isso é super violento.  Enquanto a gente não tiver consciência de que gente ainda vive esse processo colonial no pensamento, nas estruturas de poder e de todos os meios na sociedade como um todo, a gente vai continuar sofrendo e tento desigualdade.

CEAF: Já que você falou disso, eu queria perguntar quais são as emoções que afloram quando a gente vive nesse contexto de apagamento, nesse contexto de silenciamento?

Carol Ananindeusa: Amigo, dá vontade de morrer, né? Porque quando tu descobres que tu vives numa sociedade, no país, no mundo que te quer ou morta ou subserviente, é obvio que tu não queres ficar acordada, é obvio que tu não queres te manter viva. Como assim, por quê? Aí tu vais começar a perceber os atravessamentos.  Se você é negra, você vive num país racista, se você é mulher, você vive no país altamente machista é misógino, se tu não fores hétero, pior ainda, que é um país altamente lgtbqfóbico, um dos países que mais mata pessoas LGBTIQ+. Então, esse controle do pensamento, esse controle dos corpos, ele é muito absurdo, ele te controla sobre como você ter sucesso no processo educacional, seja numa instituição pública ou privada, sobre você ter uma emancipação, sobre você conseguir um emprego, uma estabilidade financeira profissional, sobre você ter credibilidade na sua fala, ou simplesmente no seu corpo existir, de você andar na rua sem ser atacada. Então, isso tudo construiu, voltando no meu processo depressivo, então foram foi tudo isso, né? Eu me vi atacada de todas as maneiras, eu não queria mais nem levantar, sabe quando eu percebi que eu tava muito doente, eu já tava muito doente e isso naturalmente toda pessoa com sã consciência vai entrar nisso alguma vez na vida, agora o papo é ter força, e nem todo mundo tem.  Eu tenho amigos, eu tenho colegas que estão nesse processo doentio, eu tenho colegas que nunca conseguiram sair dele, às vezes melhora ou piora e todas às vezes quando eu percebo que eu tô assim querendo um pouquinho ficar meio pra baixo, eu falo, ups. Porque você perceber que existe uma sociedade e que ela é contra você e você tá em paz com isto, é como se a gente vivesse numa eterna gangorra. É esse processo do firmamento, da consciência, do poder ancestral, de saber quem você é, da aonde que você veio, quais são os seus propósitos, o que que você quer fazer e tá em paz com isto, isso é digno isso é fortalecedor e isso me trouxe muito mais integridade sabe, isso é muito importante para mim e é isso exatamente o que essa sociedade não quer. 

CEAF: E quais são os mecanismos que existem no território, principalmente pensando no seu contexto, para lidar com esse desconforto, com essa dor que traz essas estruturas?

Carol Ananindeusa: Amigo é que eu já falei, a questão da firmeza, porque infelizmente quando a gente nasceu, essa estrutura de violência, desse ciclo de violência já existia há muito tempo, então é romper. Isso não vai chegar até mim, bloqueio, eu não vou deixar, bloqueio. Se retirar dos espaços, fazer a Nina Simone, o amor não está sendo servido, o respeito não tá sendo servido, eu me retiro, não sou obrigado a estar aqui.  E eu comecei a aplicar isso inclusive no meu ciclo familiar, né? Eu comecei a perceber os força que eu fazia até para ser bem aceita aqui naquela família. E eu sofria vários preconceitos né? Além de ser filha adotiva, ser negra, enfim, ser politicamente consciente.  Entendeste?  Então, a gente não é obrigada a ficar sofrendo violência. Quando a gente toma consciência disso, de que a gente não é obrigada a ficar sofrendo, a gente já rompe um ciclo e nós temos muitas ancestrais que sobreviveram e lutaram, nós somos os sonhos dos nossos ancestrais. Nossa, eu imagino assim o terror que deve ser eles olhando para gente e a gente ainda tá aceitando muita coisa calada, e ao mesmo tempo eu percebo a importância que é a gente fortalecer as que estão vindo.

Acho que virão, quando eu vejo meus alunos e as minhas alunas, eu faço, eu passo muito essa consciência, olha, é você que é responsável pela educação, ninguém vai estudar por você, é muito importante você estudar, saber da onde você veio. Você tem que usar a sua intelectualidade. As pessoas são muito subestimadas, a gente cresce numa sociedade em que as pessoas subestimam até a sua intelectualidade e a sua sensibilidade desde a infância, e isso é muito grave. E aí eu percebo o quanto que a gente precisa ainda fazer esse trabalho de formiguinha.  Não é à toa que é muito real e eu também acredito em um provérbio africano que diz que uma criança precisa de uma aldeia inteira para ser educada. O que é isso?  Referência.  A gente precisa de muitas referências, que é exatamente antagônico ao conceito de família europeu colonial, que a gente tem é o núcleo familiar, pai e mãe e acabou, no máximo o avô, avó, tia e acabou. O que é isso? É para tu não teres referências, é para não teres as outras perspectivas, é para tu não analisares as outras leituras e tirares as suas próprias conclusões, é para tu não exerceres o teu processo reflexivo e a sua intelectualidade. Isso é complicado, porque é quando tu começas a entender que o processo colonial tá em tudo, no processo educacional, na forma que a sociedade é pensada.  

CEAF: Pensando nas pessoas que que virão, nas futuras gerações, você se vê como uma referência, você acha que seus processos podem ser uma referência para as pessoas e em que medidas?

Carol Ananindeusa: Olha só, eu comecei a perceber isso, acho que foi quando eu comecei a fazer teatro, né 2005, que foi também quando entrei na universidade, eu comecei a perceber que eu era uma referência mesmo, assim, é muito engraçado, porque até então eu acho que eu tava só vivia por mim mesma, né? Preciso fazer meu corre, buscar o meu lugar no mundo. Só que tu começas a perceber, eu comecei a perceber que o que eu pensava, o que eu fazia, reverberava e muito, tanto que eu chegar até na Colômbia, isso é engraçado, porque não é a proposta, né? Olha eu vou eu quero ser uma pessoa mega reconhecida. Eu só tô fazendo o que eu acredito sabe? Então seja no viés artístico, seja no viés intelectual, seja no viés afetivo, eu percebo que isso é importante e ao mesmo tempo eu fico muito mais feliz, que eu vejo isso reverberando de uma maneira que tá multiplicando, porque eu me lembro de uma época que começou a ficar chato porque me chamaram para tudo. Hoje eu vejo que tem muito mais pessoas a serem chamadas e isso é muito importante. Quer dizer o que? Que a gente está fortalecida, que a gente entendeu. Por exemplo, o filme que eu acabei de gravar, que eu citei, sobre a história e memória da Zélia amador de Deus. Uma pessoa que ainda é viva, o que é mais importante, a gente tem de homenagear os que ainda estão vivos. E ela é professora, intelectual, artista, professora emérita da universidade. 

A gente tem muito em comum.  Exatamente todos esses atravessamentos. Quando eu vejo isso e eu vejo o quanto de pessoas que também tem a Zélia como referência, o quanto que a Zélia fez, o que a Zélia lutou, o que ela firmou, que não nos atingiu diretamente, mas reverberou de moda político, de modo histórico, que nos chega até hoje. A luta, eu fiz parte também junto com Zélia na luta do sistema de cotas na universidade. Quando entrei na universidade não tinha sistemas de cotas. Eu lembro das reuniões que a gente fazia, das discussões que nós colocávamos.  Exatamente isso, gente, a gente não tá pedindo não, a lei já tá aí, é uma lei de reparação histórica, uma lei de ação afirmativa, a gente tá cobrando o óbvio, parece que a gente vai passar a vida inteira falando o óbvio. Mas é isso, quando eu percebo que outras pessoas já entenderam e também estão dispostas a romper esse ciclo de violência política, estrutural, emocional, institucional, afetivo, já é um grande caminho. Todo mundo tem a sua importância, tem o seu micropoder dentro da sociedade. Quando a gente fala de estrutura é isso, é entender que são muitos papéis a serem cumpridos e nós vamos cumpri-los, porque nós somos a maior parte deste país, nós somos 54% do país.  Ainda é inadmissível que a gente não esteja ocupando pelo menos 50% dos espaços de poder.

CEAF: Como é que uma professora de linguagens e suas tecnologias pode dentro de uma sala de aula, um espaço tão pequeno, contribuir para que isso aconteça? 

Carol Ananindeusa: Exatamente fazer a consciência das relações de poderes, entender que se naturalizou demais as violências nesse país e as pessoas não conseguem identificar o que é a violência. Eu me lembro de estudar inglês sábado à tarde, eu me lembro de uma vez que meu pai tava questionado, eu não acredito que uma pessoa sai de casa sábado à tarde para estudar inglês.  Eu vejo as minhas alunas sofrerem, coisas semelhantes, principalmente as do eja à noite, o namorado, o marido, o pai ir na porta da sala ver se ela realmente está na sala de aula estudando, sabe, eu vejo. Infelizmente eu ainda vejo colegas minhas de profissão, professoras tirarem de sala de aula alunas que estão com crianças, que ainda são capazes de dizer assim, tu vais ter que escolher, ou tu estudas ou cuida do teu filho. Tanto que uma vez eu quase chorei quando eu vi uma aluna falando assim:  professora, a senhora sabia que você era a única pessoa que conversa com a gente, senhora é a professora mais legal, elas acham que eu tô sendo legal gente, a verdade é que eu não tô fazendo mais do que a obrigação. As violências são pensamentos coloniais, e é isso que as pessoas precisam entender, o quanto elas ainda produzem pensamento colonial. Quando eu vejo uma criança que nitidamente tá faltando muito à escola, aos olhos do estado, quando eu chegar lá, bora lá romper o bolsa família, isso é só um requisito, mas porque aquela criança não tá indo para escola?  Ela tá trabalhando dentro de casa ou tá trabalhando fora de casa, nada pode proibir, nada pode bloquear os estudos, o processo educacional de uma criança e do adolescente.

É isso que é o problema, a gente vive numa sociedade que as pessoas que deveriam nos proteger, de cara os nossos pais, depois todas as outras pessoas da sociedade e o estado, são as pessoas que nos violentam.  A gente vive num país que tem uma violência absurda contra as crianças, violência sexual, exploração do trabalho, sabe, quando as pessoas começam a entender os seus direitos, os seus deveres, o que é uma violência, que um puxão de cabelo não é agrado, não é uma brincadeira, é uma violência, um empurrão é uma violência, não deixar você estudar é uma violência, não deixar você trabalhar quando você já é adulto também é uma violência. E as pessoas não tem consciência disso, e se a pessoa para de estudar, se a pessoa para de receber informação, para de ter um ciclo social, se a pessoa para de conectar as informações e refletir sobre isso, você está exercendo uma violência, isso é controle, controle de corpos, controle de pensamento e isso é complicado. A gente lida com isso e as pessoas não conseguem enxergar isso. A gente vive numa sociedade onde infelizmente as pessoas sofrem violência dentro de casa, e quando chegam na delegacia para denunciar a pessoa ainda sofre outra violência. A gente vive numa sociedade que pior, parece que existem pessoas que têm direito a ter saúde mental e outras não, porque por mais que a gente tenha um sistema de saúde que ainda faz muito, a assistência a doenças psicossomáticas é fraquíssimo. Quem é que tem dinheiro para pagar 500, 600 mil reais em assistência psiquiátrica e psicologia por mês?

CEAF: Para você, o que significa equidade e igualdade?

Carol Ananindeusa: É incrível, porque parece que são palavras distantes e às vezes parece ser igual e também não né? Porque eu já vou puxar sardinha do meu lado, como eu sou linguista, tem a questão da memória discursiva no meio, né? E que equidade é sobre igualdade, só que durante tanto tempo se falou igualdade de uma maneira não muito bem colocada, talvez e muito deturpada, principalmente pelas forças opressoras, que você precisou pegar a mesma palavra e colocar de uma outra maneira. Agora é equidade, equidade de gênero, equidade étnico-racial, equidade disso, daquilo, para ver se a galera consegue fazer de fato a política pública de ação afirmativa, e enfim, pelo fim das opressões, na verdade é isso, no fundo, no fundo, equidade é sobre igualdade e o que é igualdade?  é sobre a gente ter dignidade de pensamento, de construção social, de construção intelectual, de reafirmação.  Porque quando a gente chega na escola, a gente estuda tanta literatura de fora e não estuda tanto a nossa?  Porque estuda tanto autores masculinos e tão poucas autoras, porque a gente estuda tanto a filosofia europeia, porque a gente não estuda a nossa filosofia, a dos nossos povos originários, filosofia indígena?  Será que a gente realmente não tinha raciocínio? Por que a gente não estuda filosofia africana? 

CEAF: E por que você é uma voz da igualdade, da equidade?

Carol Ananindeusa: Porque eu acredito que a gente tem que romper violências. A gente tem que se firmar, honrar a história das nossas ancestrais, fortalecer, continuar nesse caminho que já foi aberto. É nessa consciência de romper violências que eu faço questão de me manter, eu acredito que isto é importante para todo mundo.

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